quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Dúvida


Permanecer no quarto da infância era deixar-se afogar pelas reminiscências de uma existência leve e distante daquela que agora encarava. Intacto, o ambiente apresentava ainda os mesmos elementos que posicionara por último na adolescência, pouco antes de deixar o lar para se aventurar no mundo.

domingo, 18 de dezembro de 2016

Véspera


Arrumavam as malas. Aquela seria a primeira vez em anos que passariam a data separados. De um lado da casa, ele separava as camisas por cor: as claras na base, deixando que as escuras tomassem o maior espaço e fossem localizadas de maneira fácil. Do outro, ela recolhia os itens do banheiro. Maquiagens, perfumes, cremes, aproveitando para descartar as embalagens que há muito deveriam estar no lixo, independente das reivindicações dos donos. As tarefas eram realizadas de forma metódica e silenciosa, com a irônica eficiência que acreditavam ser a mesma dos ajudantes do bom velhinho quando pequenos. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Universo





"Verdade que o preço a ser pago é alto, 
mas temos que aceitá-lo: não podemos nos 
distinguir dos muitos sinais que passam por 
este caminho, cada um com um significado seu que 
permanece escondido e indecifrável, pois fora daqui não 
há mais ninguém capaz de nos receber e nos entender."
Ítalo Calvino in. Amores Difíceis

É que eu estou acostumado a fazer as malas e...partir – disse no exato momento que olhou pra ela e apontou pra constelação artificial acima das próprias cabeças – Mas, enfim. – concluiu, sem adicionar um final concreto à frase, deixando que a ouvinte inferisse aquilo que melhor lhe caberia.

sábado, 19 de novembro de 2016

Sorriso ao sono


"Isso me inquieta. Sinto que quem fala comigo é uma foto. 
Recordo aquele poema, "Os olhos desta dama morta me falam". 
Mas ela move as mãos e a vida volta ao seu corpo. Não está morta, 
penso de novo, e de novo sinto uma alegria imensa." 
Formas de voltar para casa, Alejandro Zambra.

Foi abrir os próprios olhos para sentir os dela o encarando do outro lado da sala. Era madrugada e a pequena forma o observava da outra poltrona, sem dizer nada. Tentou erguer-se do sofá, estabelecer algum movimento que despertasse nela qualquer tipo de reflexo, mas foi em vão: caberia apenas assistir ao enquadramento formado pelas grandes janelas em contraste com a sombra do móvel e do corpo que nele repousava. Pensou em como ela poderia ter chegado ali sem saber o endereço ou mesmo o número correto da porta a se atravessar.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Passageiro


A última vez que desembarquei no Tietê foi sabendo que não cruzaria a infinidade de linhas da Portuguesa-Tietê ao Terminal da Barra Funda porque significava ultrapassar os limites que me levariam de volta ao teu mundo, repleto de ônibus, carros, sinais fechados e lugares que aprendi a explorar do teu lado. Assim, sabia também que as mãos não pousariam na minha cintura e que seguiríamos lado a lado com um abismo nos separando, mesmo quando insisti em prender meus dedos nos seus, mesmo quando você subiu comigo de elevador e entrou comigo num quarto estranho de um prédio aleatório da Augusta, aquele, que juravas que era pro lado da Oscar Freire quando mal o meu dinheiro dava para pequenos luxos, como almoçar todos os dias ou tomar um táxi nos dias em que estivesse muito cansada. E eu ri, pelos deuses, e chorei tanto quanto foi possível. A Paulista aberta no dia seguinte era a memória que eu levaria comigo nos meses seguintes, sabendo tudo que precisava para seguir a vida estaria dentro de mim e que o lugar no qual meu corpo repousaria era só um detalhe que você não entenderia nunca.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Die lüge



Me perco toda vez que tento me achar no que escrevi. Eu era outra”, digo mais a mim que a ele, à frente, esperando que eu conclua a frase. Eu não concluo, nada, também não exijo e vejo que se impacienta esperando que eu diga que fique, que no próximo ano vamos morar juntos, que vamos visitar as pirâmides do Egito, que se fosse preciso eu vestiria todas as minhas blusas listradas para que, quando cruzasse o portão ao sair para o trabalho, descobrisse que para encontrar Wally era só me ver do outro lado da calçada pra perceber o quanto é certo. Descobri, afinal, que não é. 

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Miscelânea 141018

He was jealous, and anxious, and tender.
And I was like God’s sun to him.
To stop her from singing of the days she remembered,
He killed my white bird on a whim.
He entered the front room at dusk and implored:
“Love me, laugh, and continue to write!”
And I buried the cheerful, jovial bird
Near the well by the alder that night.
I promised to him not to wallow in woe,
But my heart turned to stone, cold and bare,
And it seems to me, always, wherever I go,
I will hear her sweet voice in the air.
Anna Akhmatova

- Escrevo em todos os cantos. escrevo porque quando te amava, o dizia todos os dias. agora que já não amo, digo a todos que cruzam meu caminho pois já não sei o que fazer do desamor. - me disse enquanto esperava o táxi pra entrar em uma casa cuja porta eu jamais cruzaria.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

acceptĭo,ŏnis


O prédio vazio denunciava o fim do semestre letivo, declarado duas ou três semanas antes. Por lá, circulavam somente aqueles que ainda possuíam alguma pendência acadêmica ou, no caso dos dois, os que dispunham de algum tempo no meio da semana. Não sabiam bem o que procurar e, a bem da verdade, não era o fim que importava mas o meio, isto é, a busca conjunta por algo que desconheciam.

domingo, 21 de agosto de 2016

Respire




Aqui, no quarto ao lado, na cidade vizinha, em outro estado, em um país qualquer, em um continente distante: silêncio. Dois mundos se calam para aquilo que, julgaram, ser eterno ou, ao menos, duradouro. 
Não mais rabiscam planos e, alheios, enterram o nome das crianças que adicionariam à família que desejavam ter junto aos quatro gatos, três cachorros e duas tartarugas.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Rota de colisão



"El mundo es de inspiración tantálica: despliegue de un inmenso
 hacerse desear que se llama Cosmos, o mejor: la Tentación."
(Macedonio Fernandez - Tantalia) 

Oscilavam entre o conforto do silêncio e conversas desconexas sobre assuntos diversos. Não obedeciam nunca aos ponteiros do relógio ou aos dias do calendário quando resolviam colidir em um canto da cidade para aproveitar, sem cobranças ou compromissos, a presença do outro. [...]
Há horas, teorizaram acerca de um universo sob o qual leis pré definidas não exercem nenhuma influência: o campo das relações humanas. 

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Hiato


A primeira vez que ouvira falar dele fora por intermédio de um rapaz que conhecera graças ao gosto literário caótico. Ao ler a situação e perceber que a moça carregava um punhado de idealizações junto a si, mencionou o amigo, dizendo que este alimentava com ansiedades a paixão que possuía por uma desconhecida. Não sabia nada, nem mesmo seu nome, mas estava convencido de que, se houvesse paciência e um pouco de coragem, poderiam ficar juntos. Diante da informação, a moça riu e, no entanto, abraçou cada pedaço da essência desconhecida, esperando que os caminhos se cruzassem.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Formas de Voltar Para Casa


“Se não quiser luzes acesas durante a madrugada e o incessante barulho do lápis cortando o papel durante a madrugada, certifique-se de não dormir comigo”, ele disse, assinando a sentença com um ponto final invisível que encarou como ironia e que ela leu como crueza.

sábado, 23 de abril de 2016

A náusea


À primeira mordida, sentira o doce do fruto sendo triturado pelos dentes passando da língua à garganta em poucos segundos. Tornando a morder, sentiu o gosto enjoado, o cheiro fétido da podridão a invadir-lhe o corpo. Colocou para fora o pedaço, descartando a parte maculada da refeição, que lembrara, seria a única em três ou quatro horas até poder chegar a própria casa. Insistiu nas partes limpas, mas o odor invadia suas narinas reforçando os defeitos da fruta que julgara perfeita momentos antes de levar à bolsa. Lembrou-se de algum ensinamento popular que dissera que um fruto maculado em contato com outros corromperia os demais. O estômago revirou com a metáfora: sua vida era uma sucessão na qual mesmo as maçãs que ainda resistiam agarradas ao pé seriam contaminadas por más escolhas tal qual aquela que se dissolvia em sua boca. Pensou também que à humanidade restaria a podridão resultante de tantas más escolhas como as dela. "Estaria, então, tudo perdido?", pensou enquanto engoliu outro pedaço, deixando que a parte escura deslizasse por suas papilas e laringe, ciente como se sentisse todo o percurso até o derradeiro baque surdo ao atingir o fundo do estômago. A água quente dentro de sua bolsa não limparia e outros sabores não reduziriam o gosto de encarar uma existência dotada de erros que não seria salva por um acerto. Sua existência tornava-se, então, permanentemente azeda e tudo estaria perdido. Perdido. Era isso.

Estaria tudo perdido?

segunda-feira, 28 de março de 2016

Retorno

Ouça: Carla Morrison - Tú Atacas

Todo caminho traçado é parte de uma bifurcação que desemboca sempre no mesmo ponto. Comum.

Ela pode traçar os dedos, continuamente deixar impressão em outros corpos,

Ele pode encher a cabeça, a cara, os ouvidos. Nunca o peito.

Vazios, condenam-se a preencher-se com aquilo que dispõem. 


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Ensaio

Ouça: James Bay - If You Ever Want To Be In Love

Já é tarde quando você me encontra e pergunta onde está meu par. Respondo qualquer coisa, digo que mesmo junto, sigo singular. Ímpar. Numa cidade tão pequena e claustrofóbica, ironia é não esbarrar em uma esquina e terminar a noite dividindo a mesma sarjeta.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Tantalia


Não nos falamos, mas com os olhos ele me diz que o amor o atingiu. O tiro certo alcançou fundo demais, causando um rombo em seu peito.
Pergunto que amor é este que abre buracos, espalha vísceras e faz sangrar. Ele não sabe. Eu não sei. 
Ele diz que o amor o colocou num pântano e que as algas nele se agarram aos pés e não o deixam sair.
Ciúme. Insegurança. O embate entre a imagem do eu e o reflexo do outro. 
Ele ri, diz que, pelo amor, enfrenta a insônia, torna-se aureliano e faz do pântano sua Macondo, não importando a sucessão de dramas a serem perpetuados pelos filhos, netos e bisnetos.
Diria para plantar bonsais, sincronizando o sentimento com a vida da planta que floresce no inverno para deixá-lo mais colorido ao invés disso. Calo.

***

"Se ainda não é o fim, por que eu me sinto como se já tivesse acabado?"