domingo, 9 de abril de 2017

Caminhando na contramão

Ouça: Fascination Street - The Cure

Atravesso a Cruz Machado e lembro que lá nos encontrávamos às seis da manhã no silêncio pós caos no meio da semana. Já não tenho mais qualquer destino ou horário pra cumprir e ela sabe, me chama de forasteira. Ri da minha rebeldia calculada ao ver meus cabelos bagunçados acima dos ombros, diz que cai bem, que agora me encontro. A verdade é que eu me perdi e só estou ali porque, sem querer, quebrei a bússola.


Ela não tem mais os olhos injetados, já não parece tão distante. Afastadas, acabamos nos assemelhando. Parece mais segura e eu invejo o impulso que conhecia. Não falamos, entre nós o diálogo maior sempre aconteceu na ausência de palavras. Aponta os prédios deteriorados, a subida pra Saldanha Marinho, algumas pedras fora da calçada. É evidente que as mudanças nos assustam porque significam que o passado é só memória que dilui e desbota a cada dia junto das antigas certezas. Mais e mais entendo quando me dizia que sentia que o que lhe afligia na vida não passaria nunca. Passou. As cicatrizes estão fechadas, observo. As minhas, por dentro, sangram vez ou outra e ela sabe. Me diz que passará. Sei que sim, estivemos lá. Clarisse me ri e me lembra que há anos não me desconcertam a alma por tê-la escancarada assim na frente de alguém.  

“O mundo não precisa da gente”, ela me diz, “precisamos de quem e do que está nele, no entanto”. Nos despedimos com a certeza de que nos veremos menos conforme o passar dos anos sem jamais nos distanciar. Ela se afasta e eu permaneço por mais uns instantes com as mãos no bolso. Escurece cedo, as iluminações em neon acendem, o vento bate, as pessoas vão para casa. 

Eu queria ter algum lugar pra voltar.

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