domingo, 2 de novembro de 2014

Silêncio contractual




Ele bebia mágoa. Das enormes. A guria que há tanto tempo destoava a pouca atenção que ele empregava nas coisas tinha partido. Com pés de algodão e a porcaria do silêncio, tão característico entre as conversas a dois. Então bebia. Um coquetel de mágoa, dúvidas e más impressões.


(***)

Em algum lugar, ela não bebia. Não dormia e vivia sob as regras automatizadas de uma vida adulta recém-imposta. Já nem sequer pensava. Apenas carregava um livro e 2 ou 3 histórias não escritas que a faziam esquecer a atenção e causavam tropeços a toda hora. Tropeços. Na calçada e na vida.

(***)

Adiantou a compra de um mapa, passagens e uma mala. Não sabia ao certo que colocaria ali. Só tinha certeza do que não poderia levar. Não: os filmes partilhados, os livros trocados e as palavras embaralhadas de dois. O roteiro dos (des)encontros, muito menos. Levaria outras histórias, curiosidade pra absorver o mundo paralelo e páginas novas. Fechou o zíper, colocou os fones de ouvido. 6 horas.

(***)

Pensava, a todo o momento, na metáfora do balão que, uma vez solto, se prende uma árvore e fica lá, atado. Imaginou galhos extensos, uma árvore alta. Vertigem. Tinha medo de altura.
Temeu. “Quanto tempo aguentaria lá em cima sem estourar? Sem murchar? E se acontecesse alguma dessas coisas, quem recolheria o pedaço flácido, inútil de plástico no chão?” Ninguém.
Pensou em ligar pra alguém. Mandar uma mensagem. Sinal de fumaça. Mordeu o lábio, pensando em quem poderia entender uma metáfora tão boba. Pensou em chamar o único que entenderia, fazendo um discurso informativo sobre boas maneiras de se evitar a dona morte. Pareceria cínica, mesmo que não quisesse. E não. Não poderia. Sabia que ela estava ali, continuaria ali, com os mil “poréns” que tinha nas mãos, enquanto ele não mais. Não depois de...

(***)

Silêncio. Silêncio. Silêncio. Três vezes. E outras dez vezes mais. Reviveu outra vez a última conversa. Não eram os mesmos silêncios. Só então entendeu que ela já estava perdida, possivelmente em um poço, quinze outros lugares. Ele não poderia esperar, não ali, não agora. Não mais.  Tomou a mala e foi.

(***)

Calaram. E assinaram, sem saber, um contrato. Sem páginas, testemunhas ou fundamentação. Só uma cláusula que dizia: not now, (maybe) later.



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