Ouça: So Sorry - Feist
Ele encara o corpo nu repousado na cama. Encolhida, ela admira o vazio das paredes brancas. Silêncio. É fim de tarde, mas lá fora já está escuro por conta do inverno. Permanecem juntos, mas separados por ocuparem os lados opostos da cama. A mulher, encolhida em seus pensamentos, o homem, sentado, de pés no chão e cabeça nas mãos. Perguntam-se onde erraram.
(***)
Ele encara o corpo nu repousado na cama. Encolhida, ela admira o vazio das paredes brancas. Silêncio. É fim de tarde, mas lá fora já está escuro por conta do inverno. Permanecem juntos, mas separados por ocuparem os lados opostos da cama. A mulher, encolhida em seus pensamentos, o homem, sentado, de pés no chão e cabeça nas mãos. Perguntam-se onde erraram.
Virando a
cabeça para trás, ele encara o corpo que costumava amar. A garota pela qual
morreu de amores agora vive num corpo maduro, marcado pelo tempo. Ela pensa o
mesmo dele. Não que isso fosse ruim. Tudo funcionava perfeitamente bem e
ninguém negava fogo. Não, é só que...
Ele se
levanta, toma as roupas e diz, quebrando a tensão pós-gozo presente no quarto,
que vai sair para “esfriar a cabeça”. No sentido literal, seria necessário
somente abrir a janela ou permanecer cinco minutos do lado de fora do prédio.
Os 5°C esfriariam cabeça, corpo e alma. Ele sai. Mais ou menos ao mesmo tempo
em que a porta bate, as lágrimas começam a escorrer pelo rosto da mulher.
- Cê tenta?
Oi?
- Cê tenta,
moço.
Tentar? Mas
tentar o quê? Porra, mais essa...
- Desculpa,
mas do que você está falando...?
- São setenta
centavos, moço. – a garota atrás da pilha de doces responde. – Pelo cigarro.
Tateio o bolso
em busca de moedas, cédulas, qualquer coisa que pague pelo misto de nicotina e
doses fracas de venenos letais. Entrego um punhado de moedas e ela me passa um
isqueiro, supondo que não carrego nenhum. Acendo.
A primeira
tragada é seguida de uma tosse. “Setenta centavos pela merda de um cigarro.”,
penso. Caro. Ainda mais se considerarmos a região em que a banca na qual acabo
de adquirir esse artefato que se transforma em cinzas na minha mão. Três
estudantes de Letras passam por mim discutindo semântica e dividindo um maço
recém-comprado. Talvez eu estivesse errado. Talvez tenham mais do que eu julgo.
A vida inteira pela frente, pra começar. Crianças letradas 1, eu 0.
Não é isso que
queria falar. Trago, puxando toda a porcaria pra dentro, prendo a respiração e
permaneço assim até arder. Parei de fumar. Juro. Na semana passada. Esse é o
primeiro desde então. Eu permaneço na calçada. Eu e minhas roupas. Eu e minha
fuga pós-sexo. Eu e...tudo que está errado.
A mulher é
Marina. Nos casamos há 13 anos. Jovens de vinte e três com mil objetivos, sendo
o principal deles compartilhar a vida com o outro. Erro. Não me entenda mal.
Ou melhor, me entenda como quiser. Mas saibam, primeiro, que: acabou.
Aos vinte e
tantos a vida é linda. Difícil, também. Porre atrás de porre, romances,
carreira. Basicamente n descobertas ao dia. Há também a necessidade de
realização. É preciso diplomas, bons empregos, experiência. E a busca eterna
pelo amor da vida toda, reforçada por tevês e livros e o que mais for possível.
Marina e eu fomos felizes. Estupidamente. Conhecemos a vida juntos. Fomos do
fundo ao topo, atravessando toda a sorte e o revés que consiste em existir.
É quase como
esse cigarro que eu fumo. Tem a primeira tragada, nem sempre boa. O ápice,
quando você deseja que não acabe, jamais. É o que mantém o vício. E o fim.
Cinzas e guimba que serão jogadas na rua entre os vãos do petit pavê ou num
lixo, fazendo a família folhas dos anos 90 mais feliz. E repete. Até que o maço
se esgota. E não há bancas de jornal ou padarias pra repor o estoque. A
embalagem é amassada, descartada e levará anos para se fragmentar.
Já não sei o
que falo. O cigarro se desfaz, ficando menor conforme o vento bate, destruindo
o esqueleto de cinzas conforme meu tempo se esgota. É preciso tomar o rumo de
casa. Abrir a porta do apartamento, largar as chaves na cozinha e ter mais uma
discussão. Proferir mais promessas que não vão ser cumpridas – e isso vale para
as duas partes. Dar mais uma segunda chance, pela oitava vez nesse ano. É
preciso insistir no relacionamento, dizer “eu te amo” e “vai ficar tudo bem,
ficaremos bem” sabendo que não vai. E quando um terceiro perguntar o que se
passa, direi que são crises, fases, dessas que todos têm e superam. Lançarão
conselhos, abanarei a cabeça em compreensão e agradecerei, repetindo, no fundo, um
“faça-me o favor de não (me) fazer pensar.”
O fogo apagou.
Nos meus dedos, resta apenas o filtro. Os pés me guiam para casa no modo piloto
automático, fazendo o caminho que julgam ser o certo, mas diferente daquele que
me levou até a banca de jornais, ampliando, assim, o trajeto. Cruzo uma rua,
viro à esquerda, então direita, portão, chaves, elevador, fechadura. Entro e o
molho cai num baque surdo no móvel ao lado da porta. Chamo por Marina. Quem
responde é o relógio da sala, com o tic tac amplificado pelo silêncio, dizendo
que ela não está. Talvez tenha ido atrás de cigarros. Ou de chocolates.
(***)
Marina não
voltou para casa. Enquanto o homem retornava, a mulher fora atropelada enquanto
cruzava a rua em direção à quadra em que, mais cedo, o marido comprara o
cigarro. O motorista, embriagado, deixou o local, sem prestar socorro. Os
paramédicos realizaram todos os procedimentos, mas de nada adiantou.
Ela saíra de
casa assim que recebera a ligação do laboratório dizendo que estava grávida. As
lágrimas, que antes eram de mal estar, deram lugar à um borrão de alegria que
precisava ser partilhado. Sabia onde encontraria o marido e que este não
abandonara o cigarro ainda. Sabia também que as coisas mudariam quando contasse
a notícia.
Quanto à ele,
com a perda, fez a si o favor de fazer-se pensar.
Até que não aguentou.
Antes mesmo de
virar cinzas, lançou-se ao mar.
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