domingo, 17 de agosto de 2014

Ruína

Ouça: So Sorry - Feist

Ele encara o corpo nu repousado na cama. Encolhida, ela admira o vazio das paredes brancas. Silêncio. É fim de tarde, mas lá fora já está escuro por conta do inverno. Permanecem juntos, mas separados por ocuparem os lados opostos da cama. A mulher, encolhida em seus pensamentos, o homem, sentado, de pés no chão e cabeça nas mãos. Perguntam-se onde erraram.

Virando a cabeça para trás, ele encara o corpo que costumava amar. A garota pela qual morreu de amores agora vive num corpo maduro, marcado pelo tempo. Ela pensa o mesmo dele. Não que isso fosse ruim. Tudo funcionava perfeitamente bem e ninguém negava fogo. Não, é só que...
Ele se levanta, toma as roupas e diz, quebrando a tensão pós-gozo presente no quarto, que vai sair para “esfriar a cabeça”. No sentido literal, seria necessário somente abrir a janela ou permanecer cinco minutos do lado de fora do prédio. Os 5°C esfriariam cabeça, corpo e alma. Ele sai. Mais ou menos ao mesmo tempo em que a porta bate, as lágrimas começam a escorrer pelo rosto da mulher.

 (***)

- Cê tenta?
Oi?
- Cê tenta, moço.
Tentar? Mas tentar o quê? Porra, mais essa...
- Desculpa, mas do que você está falando...?
- São setenta centavos, moço. – a garota atrás da pilha de doces responde. – Pelo cigarro.
Tateio o bolso em busca de moedas, cédulas, qualquer coisa que pague pelo misto de nicotina e doses fracas de venenos letais. Entrego um punhado de moedas e ela me passa um isqueiro, supondo que não carrego nenhum. Acendo.
A primeira tragada é seguida de uma tosse. “Setenta centavos pela merda de um cigarro.”, penso. Caro. Ainda mais se considerarmos a região em que a banca na qual acabo de adquirir esse artefato que se transforma em cinzas na minha mão. Três estudantes de Letras passam por mim discutindo semântica e dividindo um maço recém-comprado. Talvez eu estivesse errado. Talvez tenham mais do que eu julgo. A vida inteira pela frente, pra começar. Crianças letradas 1, eu 0.
Não é isso que queria falar. Trago, puxando toda a porcaria pra dentro, prendo a respiração e permaneço assim até arder. Parei de fumar. Juro. Na semana passada. Esse é o primeiro desde então. Eu permaneço na calçada. Eu e minhas roupas. Eu e minha fuga pós-sexo. Eu e...tudo que está errado.
A mulher é Marina. Nos casamos há 13 anos. Jovens de vinte e três com mil objetivos, sendo o principal deles compartilhar a vida com o outro. Erro. Não me entenda mal. Ou melhor, me entenda como quiser. Mas saibam, primeiro, que: acabou.
Aos vinte e tantos a vida é linda. Difícil, também. Porre atrás de porre, romances, carreira. Basicamente n descobertas ao dia. Há também a necessidade de realização. É preciso diplomas, bons empregos, experiência. E a busca eterna pelo amor da vida toda, reforçada por tevês e livros e o que mais for possível. Marina e eu fomos felizes. Estupidamente. Conhecemos a vida juntos. Fomos do fundo ao topo, atravessando toda a sorte e o revés que consiste em existir.
É quase como esse cigarro que eu fumo. Tem a primeira tragada, nem sempre boa. O ápice, quando você deseja que não acabe, jamais. É o que mantém o vício. E o fim. Cinzas e guimba que serão jogadas na rua entre os vãos do petit pavê ou num lixo, fazendo a família folhas dos anos 90 mais feliz. E repete. Até que o maço se esgota. E não há bancas de jornal ou padarias pra repor o estoque. A embalagem é amassada, descartada e levará anos para se fragmentar.
Já não sei o que falo. O cigarro se desfaz, ficando menor conforme o vento bate, destruindo o esqueleto de cinzas conforme meu tempo se esgota. É preciso tomar o rumo de casa. Abrir a porta do apartamento, largar as chaves na cozinha e ter mais uma discussão. Proferir mais promessas que não vão ser cumpridas – e isso vale para as duas partes. Dar mais uma segunda chance, pela oitava vez nesse ano. É preciso insistir no relacionamento, dizer “eu te amo” e “vai ficar tudo bem, ficaremos bem” sabendo que não vai. E quando um terceiro perguntar o que se passa, direi que são crises, fases, dessas que todos têm e superam. Lançarão conselhos, abanarei a cabeça em compreensão e agradecerei, repetindo, no fundo, um “faça-me o favor de não (me) fazer pensar.
O fogo apagou. Nos meus dedos, resta apenas o filtro. Os pés me guiam para casa no modo piloto automático, fazendo o caminho que julgam ser o certo, mas diferente daquele que me levou até a banca de jornais, ampliando, assim, o trajeto. Cruzo uma rua, viro à esquerda, então direita, portão, chaves, elevador, fechadura. Entro e o molho cai num baque surdo no móvel ao lado da porta. Chamo por Marina. Quem responde é o relógio da sala, com o tic tac amplificado pelo silêncio, dizendo que ela não está. Talvez tenha ido atrás de cigarros. Ou de chocolates.

(***)

Marina não voltou para casa. Enquanto o homem retornava, a mulher fora atropelada enquanto cruzava a rua em direção à quadra em que, mais cedo, o marido comprara o cigarro. O motorista, embriagado, deixou o local, sem prestar socorro. Os paramédicos realizaram todos os procedimentos, mas de nada adiantou.
Ela saíra de casa assim que recebera a ligação do laboratório dizendo que estava grávida. As lágrimas, que antes eram de mal estar, deram lugar à um borrão de alegria que precisava ser partilhado. Sabia onde encontraria o marido e que este não abandonara o cigarro ainda. Sabia também que as coisas mudariam quando contasse a notícia.
Quanto à ele, com a perda, fez a si o favor de fazer-se pensar
Até que não aguentou.
Antes mesmo de virar cinzas, lançou-se ao mar.

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