quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Vício

Ouça: Segunda Chance - Johnny Hooker


When I met you, you were blue.

As luzes baixas escureciam os rostos, o saxofone gemia nos ouvidos e a fumaça inebriava os pulmões. As vozes, apesar de embriagadas, eram contidas. Alguns discutiam as percepções filosóficas de um francês e um alemão com a mesma naturalidade com que desejavam ‘bom dia’. Sofás, corredores, tapetes. Jovens dispostos, corpos relaxados embalados por álcool, boa música e uma intelectualidade completamente avessa às regras da Academia.


A sombra se movia do outro lado da sala. Os cabelos nos olhos, a fumaça saindo por entre o indicador e o mediano, subindo até os olhos injetados perdidos numa parede branca, o intrigavam. Encarava o outro. A sombra apresentava cabelos pelos ombros presos numa bagunça no alto da cabeça. Os fios caídos sobre os olhos se misturavam à massa branca. Os nós da mão apertavam com força a cada tragada. Balançava a que estava livre seguindo o ritmo do blues. Aquele que encarava já não podia aguentar. Levantou, foi até o outro lado, se inclinou no ouvido do rapaz, munido da voz clara e grave.
- Eu não me importaria de virar cinza nos teus dedos.
A cabeça do ouvinte virou, encarando o estranho que lhe lançara uma frase de efeito claramente calculada pra lhe chamar a atenção. Tragou pela última vez, depositou os restos da mistura de tabaco e venenos no cinzeiro e encarou o rapaz. Aproximou-se o suficiente para que os hálitos se misturassem. No ambiente, a melodia cruzava com diálogos. No espaço entre os dois, o silêncio das palavras dava espaço para que os corpos declarassem suas vontades. Quando um levantou, o outro repetiu a ação. Cruzaram uma das portas do lugar. Trançaram as pernas, despiram as roupas e vergonhas. Também não se importaram em regular o volume dos corpos transpirando desejo enquanto o mundo acontecia lá fora. A confusão de músculos, cabelos, pelos, começava em um e terminava no outro. Caíram exaustos assim que as vontades foram saciadas. O primeiro a despertar largou um telefone na mesa. Juntou as roupas e saiu com a certeza de nunca ter sentido algo como o que sentira naquela noite.
Três dias o telefone tocou. “Vai ter uma festa, aparece aí”. Mesmo local, pessoas diferentes. Descobriu que o cara de cabelos bagunçados era dono do lugar. Descobriu também o nome. Júlio. Revelou o seu. Rodrigo. Alguns encontros mais bastaram para que descobrissem ainda mais, das histórias e do corpo alheio.
Como cigarros recém acesos, ardiam. Lábios e línguas trabalhavam para saciar as faltas. Pescoço e ombros serviam de apoio pra mágoas. Depositavam na figura de dois tudo o que fosse possível. Tragavam, inebriando os pulmões, não com fumaça, mas com o perfume depositado nos poros. Mais e mais. Tragavam também, mais tarde, não só o cheiro, mas tudo que pertencia ao outro. A chama consumia devagar. E começaram a virar cinzas.
Até o dia em que, inevitavelmente, esfacelaram, sem sequer sobrar resquícios.



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