sábado, 5 de julho de 2014

Anestesia - I

Ainda lembro que, quando entrou ali, fez todos os pescoços virarem. Se equilibrava nos saltos sem muito cuidado, sem necessidade de seduzir. A pele branca, o vestido negro, a nuca à mostra, o Chanel de Valentina. Não fosse pela idade, não avançada, mas madura, já beirando os quarenta, seria a italiana – ou melhor, a americana- em pessoa. A semelhança com a moça dos quadrinhos e o desinteresse por qualquer pose que os seres do sexo feminino custavam a manter em situações de extrema sociabilidade atraíam qualquer um naquele bar. Hipnotizava sem dificuldades. Isso tudo antes de quebrar a cara num poste, num dia qualquer. 


Se jogou na cadeira em frente ao balcão, lançou os braços à frente e balançou os dedos, exigindo a minha atenção. Disse para esperar um pouco, tinha de entregar o pedido anterior. Foi quando ela cortou:
-Olha aqui, esperar é o cacete. Tenho pressa, anda!
Andei.
Não queria obedecer, afinal, vários clientes tinham chegado antes e tinham prioridade. Mas ela fazia o que queria, consigo e com outros.
- O que você quer?
- O que tiver. Traz uma cerveja, vodca, uísque, vinho, sei lá.
- Você sabe que não prest...
- Olha aqui, o que não presta é um garoto com pelos recém crescidos no rosto me dizendo o que fazer. Traz o que tiver de mais forte. Eu pago bem.

O jeito cretino, felino assustava. Mas continuava a atrair. Não sabia o que ela fazia ali. Claramente não combinava com o ambiente: gente jovem, efusiva, bebendo pra comemorar e jamais pra esquecer, como, claramente, fazia a mulher à minha frente.
- Aqui.
- Ow, volta.
- O quê?
- Obrigada. –lançou um sorriso doce de canto de boca. Nada condizente com a agressividade de minutos atrás.
- Se precisar, chama.
 Bebeu calada. Tudo. Saiu cambaleando do bar.
Voltou no dia seguinte. Sentou no mesmo lugar. Balançou os dedos, exigiu a mesma quantia de álcool da noite anterior. Dessa vez, alongou a estadia, ficando até perto do horário de levantar as cadeiras sobre as mesas. Antes de sair, tentou iniciar uma conversa.
- É ridículo, né?
- O quê?
- Esses jovens que vem aqui. Pra beber e comemorar. Comemorar o quê?
- Sei lá, vai ver um desses caras pegou a guria que queria. Ou recebeu uma promoção. Ou o time venceu...
- E as gurias? Elas não existem?
- Você não me deixou chegar lá. Elas podem beber pra seduzir, porque o cara quer, porque elas querem, porque encontraram as amigas que não veem há tempos...
- Não.
- Não o quê?
- Não. As pessoas não bebem por isso.
- Então...
- Por quê? Tu quer saber. Já digo que, se fosse pra comemorar, não desceria queimando feito soda cáustica. A função única do álcool é amortecer. Fazer esquecer. É por isso que as pessoas bebem.
- Esquecer? – apontei pro copo- E você? Quer isso também? Quer esquecer o quê?
Ela ergueu os olhos que estavam fixados no líquido e me encarou. Olhos de ressaca e eu não me refiro à descrição de Capitu. Verdes, feito absinto. Talvez o único ponto que destoava da semelhante italiana, mas isso não a tornava em nada menos interessante. Aliás, qualquer um que se atrevesse a encarar aqueles dois grandes pontos certamente veria fadas sem precisar de um pingo de álcool. E essa é uma péssima comparação. Basta compreender que encará-la era um caminho sem volta. Desviei a atenção antes que a situação se tornasse irremediável.
- Então...? Esqueceu o que deveria esquecer?
- Não.
- E...
- Tô indo. –lançou o dinheiro no balcão, deu meia volta e saiu. Mas antes de cruzar a porta soltou: - e também não vou esquecer de você, menino. Volto amanhã. E vou te contar uma história sobre a vida.
Juro. 24 horas nunca demoraram tanto a passar.

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