domingo, 22 de junho de 2014

Musa - II


Sem grandes afetações, fez o pedido. O “sim” reafirmava a ideia de atravessarem as décadas juntos. Decidiram, porém, esperar um ano para trocarem as alianças de maneira definitiva. Um ano é pouco, passa rápido, dizem os otimistas. De fato, é um curto espaço de tempo para quem compartilha a vida há tanto. Restou esperar.
365 dias seriam suficientes para editar as memórias de ambos versadas pelo noivo e entregá-lo a tempo de cortar o bolo. As noites transcritas seriam o presente daquela que o impulsionou a ir além – no sexo, no amor, na vida...
Se os otimistas dizem que o ano passa rápido, há os que creem no poder dos dias para alterar o rumo de uma vida. Um dia, uma hora, o espaço de uma palavra...O universo disposto a lançar pedras que serão puladas ou guardadas no bolso. Fato é que o amor, esse sentimento complexo cantado e analisado por séculos a fio, permanecia entre os dois, embora sofresse desgastes conforme a data de fazer juras e assinar a cláusula de escrav...digo, matrimônio, se aproximava. O caracol prateado no dedo parecia minar as forças do Sansão que habitava a menina e anulava também a intensidade das alianças firmadas que foram gravadas na pele de ambos durante as longas noites.
Perto do grande dia, o rapaz recebera a melhor das notícias: o presente, que, a princípio, era só para a amada, suscitara o interesse em uma grande editora. Era necessário, então, que fosse ao estado vizinho para lidar com os trâmites da publicação e garantir que tudo ficasse pronto até o grande dia.
Se nas páginas o romance ia bem, a dois, o sonho começava a ruir. Ela se calara, mas não da forma misteriosa que lhe era comum. O silêncio agora era seco e arranhava a garganta. Fez o caminho inverso: de pérola para grão de areia comum preso numa concha. Ele já não tinha a segurança de ter feito a melhor das escolhas. A viagem viria a calhar. Então, numa terça, tomou o ônibus dizendo que voltaria logo. Tinha a sensação de que deixava para trás algo importante...Ela! A distância já amplificava os sentimentos e nublava a razão.
Tinha, de fato, deixado algo importante em casa: o manuscrito. Assim que pôs os pés em seu objetivo final, ligou para a amada pedindo que enviasse os arquivos finais. Meia hora em uma gráfica rápida daria jeito no problema.
Ligou. O celular tocou. Uma.
Duas.
Três.
Cinco vezes.
Tentou chamar em casa. No trabalho dela. 37 ligações. A 38ª foi interrompida. O editor ligava perguntando “mas-que-porra-que-merda-é-essa-onde-você-está”. Explicou rapidamente o que havia de errado e recebeu só um “volta pra casa e envia a cópia final. Porra, e boa sorte aí, cara”. Tomou o ônibus e digeriu a preocupação a viagem toda. E o livro que se fodesse!
Girou a chave na porta. Silêncio. Tudo continuava no mesmo lugar, como se ninguém tivesse passado ali desde que saíra pela manhã. Chamou o nome da garota e ninguém respondeu. Discou o número dela outra vez e foi vasculhar os cômodos. Todos normais, exceto pelo quarto. Largou o telefone ao chão ao mesmo tempo em que abria e encarava os armários vazios. Nada do que era dela estava ali.
Procurou também os manuscritos e o computador a fim de enviar as porcarias de uma vez para calar o editor que não parava de pentelhar. Nada. Dela ou da história. Nenhum registro da vida a dois. Olhou para a gaiola do pássaro que mantinham. Nem isso. Porta aberta e dentro dela apenas a aliança. Naquele quarto, além disso, restava o frasco de perfume estatelado-na fuga às pressas-ao chão, sufocando-o de lembranças.




(***)
Dava o último nó da gravata. Em 30 minutos lançaria o 3º livro. O mais fraco, segundo os críticos. O mais humano, segundo os leitores mais fervorosos. Não sabiam da história, não importava.
                               
Dois dois
                                               Depois que ela tinha ido embora, reviveu a história dia após dia, durante o numero de anos que permaneceram juntos a fim de registrar as memórias. Não era a mesma coisa. Nunca seria. Mas a sorte já havia sido lançada, nada mudaria.

(***)
Quando adentrou o saguão, encontrou os mesmos rostos. Os amigos, críticos, as maria-rascunhos com quem trocara experiências no último mês...Depois da abertura, feita por um escritor consagrado, péssimo, mas reconhecido, soltou uns poucos agradecimentos e pôs-se a escrever as dedicatórias. “Com todo o carinho”, “que saibas reconhecer o amor à tua volta...”. Namorados, românticos incuráveis, solteironas, literários. Padrão. Servia para qualquer um. Imparcialidade.

- Eu preferia a primeira versão...-Disse a voz que cortou o automatismo das letras. Ergueu os olhos e encarou a morte com cara de menina.
-....aquela em que você não me transforma em uma vadia sem coração, sabe? –E riu. Derrubou o mundo naquele momento.
                Desconcertado, ainda a encarava. E os dois, por todos eram encarados. Se pegassem uma faca, poderiam cortar o silencio e a tensão do ambiente, de tão densos que haviam se tornado. Um dos organizadores sussurrou algo ao poeta e não obteve como resposta mais que um “tô indo”. Levantou, tomou a mão da moça e saiu.


Extasiados, os espectadores, ao vê-los cruzando a porta, aplaudiram. O encontro entre a musa e o poeta tinha se materializado na frente de todos aqueles olhos que voltaram para casa entendendo que as melhores histórias de amor, embora cheias de complicações, são as reais.  

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