quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Sobre o encontro de Urano e Júpiter(ou divagações interplanetárias)

Ouça: Jupiter Crash - The Cure

Tinha os olhos pousados no chão e mordia a tampa da caneta enquanto esperava uma inspiração que concluísse as ideias rabiscadas no caderno velho. A porta abriu-se violentamente, tirando a garota do torpor e do mundo mágico das palavras. "Se quiser descer...", disse. É, talvez fosse hora de dar um tempo, ver gente. Trocou o pijama por um simples vestido negro e um par de sapatilhas parecidas com aquelas usadas nas aulas de ballet que nunca fizera. Os cabelos avermelhados caíam em cascata, dando ao rosto um tom meio misterioso. Meio menina-mulher, apesar das roupas e da leve maquiagem.
Desceu. A sala de estar e os demais cômodos da casa dos pais encontravam-se cheios, tal como nunca vira. Estranhos. Pode reconhecer alguns (des)conhecidos da faculdade da irmã e colegas dos tempos de ensino médio da mesma misturados ao bando de gente esquisita e animada. Desconfortável, pegou uma das garrafas do bar de seu pai e foi até a varanda, fechando a porta atrás de si, evitando  possíveis incômodos.

Cantarolava qualquer coisa que lhe viesse à mente, fazendo ou não parte da música, sem se preocupar com ritmo  métrica, rima e todas as teorias aprendidas em aulas dispersas de piano e literatura. Encarava os prédios e suas luzes dispersas, assistia a vida alheia de camarote.

- Já pensou em abraçar o céu? -uma voz, que destoava letra e canção, perguntava quase ao pé de seu ouvido.
- Oi?
- Desculpa. -um sorriso dançava entre os lábios do rapaz, fazendo com que as covinhas ficassem aparentes, mesmo em meio a barba mal feita.- Te vi aí, só. Acompanhando o som. Fluída...
- Fluída?
- É. Feito ar, poeira, brisa leve. É, brisa leve. Levinha. Voa, menina!
- Se soubesses que tenho uma bola de ferro que me prende ao chão...-disse pra si e encarou o estranho. O rapaz tinha olhos negros feito tempestade e encarava o universo ao redor, até resolver descansá-los em cima dos da menina.
- Que dizes? Bolas de ferro? Feito prisioneiro? Sei não...
- Por que dizes? Nada sabes da minha vida.

(...)

- Tens cara de ser de Saturno. Cheia de anéis ao teu redor. Súditos.... Errei?
- Sim. -mordeu os lábios e tornou a encarar o indagador.- Urano, moço... E você tem cara de...Marte? Não, apesar das cicatrizes de um bom guerreiro. Tens uma logo ali na testa. Sabe o que faz. Júpiter?
- És dotada de boa percepção.
- Observação.

(Silêncio)

- Me dá tua mão.
- O que quer?
- Saber de você. Vai.
(Silêncio)
- Sua mão é pequena. E bonita, se não me engano, escrever bem. Idealista também. Calada.
- Talvez.
- Vai ter uma vida longa, com obstáculos. Posso ver que tens a cabeça no lugar, também.
- E o coração?
- Ah, teu coração vai bem, menina. Olha bem aqui. É longa. Forte. Vais encontrar um grande amor.
- Quanto é?
- O quê?
- A consulta.

(Silêncio)

- Sabe que não tem que ser tão, sim?
- Sertão?
- Não. -e riu, enquanto ela, constrangida, baixou os olhos e encarou qualquer piso meio solto ou insetos em suas jornadas.- Falo de ser tão... perdida, ensimesmada. Essa parede que tens, redoma.
- Assim não dói.
- Não dói. E um dia você nunca vai sentir de novo.
- Então vem, me leva disso.
- Te cuido.


(Silêncio)

- ......... ................ ....................... ................... ....
- ...............
- ...................... ....... ............ ..... ...... .........
- ............... ............... ............ ........................

Das divagações interplanetárias, o que era pra ser frio, incendiou. Devoraram-se. Nada faltou. Nada mais faltaria. Palavras não seriam necessárias. Aquilo que é grande demais não precisa ser explicado, subentende-se. Bastou somente que dois cosmos se juntassem, que díspares reconhecessem suas velhas almas e todo o universo voltou a se alinhar. 



Um comentário:

  1. "- Tens cara de ser de Saturno. Cheia de anéis ao teu redor. Súditos.... Errei?"

    A maneira como você escreve, parece que as palavras simplesmente fluem, e a gente não se cansa de ler. Quando estava lendo parecia que estava com fome, e cada palavra era um alimento, mas por mais que eu "comesse" queria mais.

    Parabéns. :*

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