segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Clarisse; 40.

Ouça: You Don't Know What Love Is - Billie Holiday

A mulher caminhava cuidadosamente pela calçadas curitibanas de petit-pavé, enquanto tentava manter-se de pé nos sapatos de salto. Seguia, sem rumo. Já era madrugada, mas os bares continuavam abertos. Andava sem saber ao certo aonde queria chegar. Parou num cruzamento. Tentou ler a placa, mas as memórias invadiram-na antes que conseguisse desvendar as letras. Alameda Dr. Muricy. Rua Cruz Machado. Rua Saldanha Marinho. As ruas de sua adolescência. Os becos por onde Clarisse matava tempo, aula e, aos poucos, a si mesma. As manhãs de segunda à sexta vieram-lhe a mente. Ela percorria aquelas ruas à procura de qualquer coisinha que tirasse sua vida do marasmo juvenil. Mendigos, meretrizes, boates, velhos nojentos e bêbados a provocar menininhas de 14 anos, como ela; as frequentes batidas policiais, as drogas. Tudo o que tinha sido sua adolescência, ali. Nada havia mudado. O Velho Chico continuava boêmio.

Clarisse decidiu então entrar em um dos bares que ali haviam. Cervejas, drinks, cigarros, pessoas efusivas e felizes. Jovens com uma vida inteira de escolhas pela frente, diferente dela, que, agora com 40 anos, esperava que a morte batesse à sua porta, dia após dia. Adentrou em um dos estabelecimentos, sentou-se no bar e ficou a aguardar o atendimento enquanto fitava o ambiente ao seu redor. Após cinco minutos, um rapaz, de pouco mais de vinte anos, lhe chamou:

- A senhora deseja algo?
- Eu...Eu, sim. Quero.
- Então...O que vai ser? Um drink, uma cerveja, tequila?
- Não.
- ...
- Eu desejo voltar ao passado e ter de volta a minha vida. Desejo recuperar o tempo perdido em drogas, distúrbios, internações...Eu quero voltar para minha adolescência. Quero dizer aos meus pais que eu os amo e que, embora seja clichê, minha mãe foi sempre a melhor do mundo. Quero aqueles sábados à noite em casa com pizza e filmes. Quero os insuportáveis almoços em família. Eu...eu queria minha família de volta.
- Mas, senhora...
- Não. Deixe-me falar. Não sou senhora. Não casei. Sempre fui promíscua. Por medo. Por medo que o amor me atingisse e acabasse com meu modo leviano. Eu desejo todos aqueles amores juvenis, adolescentes, bobinhos, inocentes. Que fazem a gente chorar, pensando que dói o coração, quando, na verdade, dói é a barriga por falta de comida. Quero voltar pro ponto onde minha ingenuidade e crença no mundo ainda não havia sido deflorada. Desejo não ter conhecido aqueles homens, velhos ou novos, nojentos. Só o sexo lhes importava, só o dinheiro pra porcarias me satisfazia. Quero ter de volta aquela pré-adolescência fofinha. Aquela em que eu tinha os menininhos na minha mão e os fazia sofrer por capricho. Queria ter de volta aquela paixão arrebatadora que me acometeu  na adolescência. E foi linda. Éramos como os casais dos filmes. Comparavam-nos com Sid e Nancy. Ele, junkie, tocando a morte. Eu, que que um dia fui sã, acabei dançando à beira do precipício. Tudo por amor. Tudo por ele. Onde acabava um, começava o outro. Os temperamentos agiam de igual forma. Nós ficávamos doentes juntos. Eu, tola, estúpida, acreditava que envelheceríamos juntos. Fui tonta, sabe? Na verdade, nunca soube quem ele era. Eu amei alguém que, mesmo ao meu lado, nunca conheci. E, por isso, me joguei. Em drogas, sexo, rock'n'roll. Como os rockstars. Acredita? Eu, aos 14 anos, matando aulas e me matando. Papai e mamãe foram enganados por anos a fio. Morreram sem conhecer a filha. Fiz como ele. Eu enganei todos ao meu redor. Pra me proteger. Descontei em outros babacas, usei-os, fiz com que me amassem e parti. Dizem que, quando a gente ama algo ou alguém, a gente tem que deixar livre. Quem foi que inventou essa palhaçada? Me diz! Eu agarrei cada um dos meus homens pelo fígado, não deixei que fossem. Suguei a energia de todos eles. E parti. Porque, é somente quando não se ama você pode dizer adeus. Você, garoto. Qual o teu nome?
- M...-engoliu a seco e sussurrou- Marcos.
- Marcos, huum, Marcos. Um dos meus homens tinha este nome. Ele traía a esposa. E, como posso ver pelo teu semblante, você tem namorada. Eu podia te levar daqui. Agora. Te compraria. Uma noite. Pagava bem. E você iria. Eu sei que iria.
- Não. Nunca. Jamais.
- Ah, iria sim, moleque. Eu conheço o teu tipo. Menino bonitinho, de família de classe média alta, que nem precisaria trabalhar aqui. Mas o faz porque é aqui que vem caçar. Tem namorada. Ela é ingênua. Ela te ama, ama muito. Mas, ela não sabe o que você faz. Não sabe. Enquanto a mocinha está lá, estudando pra passar numa porcaria de universidade, você tá aqui, "trabalhando" pra manter suas garotas. Você sabe, sabe muito bem que, se ela soubesse o que você faz aqui, certamente iria te largar. E, por isso, tem medo. Porque é ela, só ela que te apoia, que te consola e que tem o cafuné que você nunca vai encontrar igual. Mas, ainda assim, Marcos usa e coloca um par de chifres na cabeça da menina. Caprichoso, egoísta, mau menino.
- ...
- Ok. Vou parar de te perturbar. As pessoas, quando expostas a verdades, calam-se. E você o fez. Talvez mude, talvez não. Mas, voltando à pergunta que você fez, eu queria o mundo. Um amor avassalador, alguém pra passar o resto dos meus dias. Mas, eu me contento com duas garrafas de vinho. Pra viagem, por favor.

Marcos caminhou até a adega, o coração na boca, os pensamentos fervilhando. Pegou as garrafas, os melhores vinhos da casa e entregou à mulher.

- Pronto, estão aqui.
- Quanto é?
- Cortesia. Mas, só uma pergunta: qual é o teu nome?
- Clarisse.
- Obrigado. Obrigado. E, por favor, se decidir tomá-los, não dirija.
- Péssimo conselho, boy. Uma louca a menos. Se eu sair daqui e meter minha cara num poste, tá tudo certo, tudo bem.

Clarisse saiu do bar. Localizou novamente seu carro, desligou o alarme e, com o saca rolhas abriu as garrafas, consumidas rapidamente. Trinta minutos depois, acidente. Clarisse faleceu de morte súbita. Sem dor, sem consciência, sem nada.

"Qui amat periculum, in illo peribet."


2 comentários:

  1. Adorei *-*
    Beijinhos, Lyn
    http://pequenainsone.blogspot.com

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  2. Gostei da playlist, e gostei mais ainda da maneira que você brinca com as palavras. Estou seguindo, se der, e quiser, curte minha fanpage :*

    http://veronicareis.blogspot.com/

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