Ouça: Gardênia Branca - Filipe Catto
Cantarolava o fado da infância enquanto tingia as unhas de vermelho sangue, encarando o próprio trabalho como um restaurador a cuidar da mais preciosa das obras. Pois o era, afinal. Dona de si, Ângela se encarava no espelho após as horas investidas no próprio cuidado. A tela iluminada ao lado avisava que o próximo estaria ali em alguns minutos, dando-lhe tempo para retocar o batom, o perfume e a confiança.
Cantarolava o fado da infância enquanto tingia as unhas de vermelho sangue, encarando o próprio trabalho como um restaurador a cuidar da mais preciosa das obras. Pois o era, afinal. Dona de si, Ângela se encarava no espelho após as horas investidas no próprio cuidado. A tela iluminada ao lado avisava que o próximo estaria ali em alguns minutos, dando-lhe tempo para retocar o batom, o perfume e a confiança.
Por meio do corpo, não lhes dava nada a não ser algo para pensar que os distraísse da monotonia da rotina e dos problemas que lhes habitava a mente. Angel ou Angel-A era o apelido da que saía pela porta determinada a dissipar tensões e frustrações daqueles que a procuravam em busca de um pouco de paz.
Dividia-os em dois grupos: aqueles que carregam culpa e os que não carregam nem a si. Os primeiros chegavam sempre alegando que aquela seria a primeira - e, claro, última - vez porque, “veja bem, passamos por uma crise em casa (ou no trabalho) e ninguém parece entender”. Já o segundo se apresentava, em sua maioria, seguro de sua escolha até o momento de desmoronar frente à mulher que era. Encantava não só pelas curvas, mas pelos ouvidos que escutavam atentos à lamúria masculina a se repetir feito os números da sequência de Fibonacci: infinita, porém previsível. Dava-lhes então o remédio, fosse meia dúzia de sabedoria enlatada ou o toque suave da ponta dos dedos.
A aceitação se repetia quando a companhia era feminina. Presenteavam-na com confidências que acreditavam ser inéditas, quando ela já havia experienciado tudo, algumas vezes com os parceiros de quem compartilhava as confissões. Transitava entre os dois mundos exposta, cruzando o tabuleiro tendo como escudo apenas a própria pele e a calma de devorar quem lhe aparecesse à frente, fosse por desejo ou desgosto.
E vivia. Como todos. Ou melhor por saber que a verdade de si era a mentira que outros tanto buscavam esconder.
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