Ouça: Jewellery Bx/Cross Eyed Bear - Damien Rice
Depois de meses de ausência, trombaram em um dos cafés que costumavam
frequentar aos domingos, depois de compartilhar os corpos e a cama. O dia,
fugindo da antiga rotina, era quarta. Ela quase não reconheceu a moça, pois
parecia ter mudado por inteiro. A outra sorriu, acenando enquanto soltava uma
saudação de um de seus filmes preferidos.
Como tinham algum tempo, decidiram ficar por ali e dividir uma mesa,
enquanto tomavam conhecimento dos últimos dos planos que não mais
compartilhavam. A primeira gesticulava quando explicava sobre as viagens de
trabalho e os afazeres de uma agenda cada vez mais ocupada. A outra prestava
atenção, tentando se certificar de que aquela que estava à sua frente ainda era
a que conhecera em uma festa ruim na qual assinara um silencioso contrato de
compartilharem a vida juntas, sem jamais contar com o contratempo que as
separaria.
Interrompeu para perguntá-la se estava tudo bem, pois parecia mais magra.
Ela mencionou algo sobre indelicadeza, destilando ironia que fora respondida
com preocupação. A estranha justificara dizendo que o ritmo a impedia de levar
uma vida regrada, mas que estava bem e há tempos não se sentia tão leve, sem
notar que a resposta ferina feria ainda mais as memórias da outra pela
separação.
A companhia continuava a encarar
todos os detalhes que lhe passaram despercebido devido ao distanciamento. A
mulher à sua frente parecia ter sido esculpida. Os ossos ressaltados se faziam
presentes, trazendo um quê de elegância que consideraria bela, não fosse pelo
histórico conturbado pela busca da perfeição.
Após meses sem encontrá-la, tinha certeza: a menina que conhecera fora
esculpida, revelando uma mulher franzina, pequena e que lhe incitava cuidado ao
invés dos sentimentos de inconsequência de outrora. Lembrou-se d'A menina má,
de Vargas Llosa. A fragilidade da niña mala junto ao atrevimento de ser quem
era continuavam ali. Brincava de ser grande e pedia cuidado mesmo sabendo que a
única capaz de resolver seus problemas era a própria.
Apreciou-lhe as maçãs, agora fazendo um par com grandes olhos cujas
lágrimas secara antes mesmo de caírem. Automaticamente mencionou sobre seu
trabalho- ou melhor, a ausência deste. Na jornada por descobrir a si, acabara
revelando o vazio dos vinte e poucos, quando ninguém, a não ser, aparentemente,
a (ex) companheira à frente, sabe o que quer fazer ou possui garantias em uma
vida que é por demais extensa.
A outra sorriu, quebrando as pernas do antigo amor como fazia antes ao
dizer que tudo ficaria bem. Em silêncio, encararam as memórias daquilo sem as
lentes da mágoa revelando as preocupações, ainda existentes, com os demônios que
dançavam na cabeça de ambas.
Entenderam
ali mesmo que seus caminhos, mesmo difusos, colidiriam. Aceitaram o impacto sem dar mais espaço à trégua.
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