domingo, 20 de dezembro de 2015

Metamorfose

Ouça: Jewellery Bx/Cross Eyed Bear - Damien Rice


Depois de meses de ausência, trombaram em um dos cafés que costumavam frequentar aos domingos, depois de compartilhar os corpos e a cama. O dia, fugindo da antiga rotina, era quarta. Ela quase não reconheceu a moça, pois parecia ter mudado por inteiro. A outra sorriu, acenando enquanto soltava uma saudação de um de seus filmes preferidos.


Como tinham algum tempo, decidiram ficar por ali e dividir uma mesa, enquanto tomavam conhecimento dos últimos dos planos que não mais compartilhavam. A primeira gesticulava quando explicava sobre as viagens de trabalho e os afazeres de uma agenda cada vez mais ocupada. A outra prestava atenção, tentando se certificar de que aquela que estava à sua frente ainda era a que conhecera em uma festa ruim na qual assinara um silencioso contrato de compartilharem a vida juntas, sem jamais contar com o contratempo que as separaria.

Interrompeu para perguntá-la se estava tudo bem, pois parecia mais magra. Ela mencionou algo sobre indelicadeza, destilando ironia que fora respondida com preocupação. A estranha justificara dizendo que o ritmo a impedia de levar uma vida regrada, mas que estava bem e há tempos não se sentia tão leve, sem notar que a resposta ferina feria ainda mais as memórias da outra pela separação.  

 A companhia continuava a encarar todos os detalhes que lhe passaram despercebido devido ao distanciamento. A mulher à sua frente parecia ter sido esculpida. Os ossos ressaltados se faziam presentes, trazendo um quê de elegância que consideraria bela, não fosse pelo histórico conturbado pela busca da perfeição.

Após meses sem encontrá-la, tinha certeza: a menina que conhecera fora esculpida, revelando uma mulher franzina, pequena e que lhe incitava cuidado ao invés dos sentimentos de inconsequência de outrora. Lembrou-se d'A menina má, de Vargas Llosa. A fragilidade da niña mala junto ao atrevimento de ser quem era continuavam ali. Brincava de ser grande e pedia cuidado mesmo sabendo que a única capaz de resolver seus problemas era a própria.

Apreciou-lhe as maçãs, agora fazendo um par com grandes olhos cujas lágrimas secara antes mesmo de caírem. Automaticamente mencionou sobre seu trabalho- ou melhor, a ausência deste. Na jornada por descobrir a si, acabara revelando o vazio dos vinte e poucos, quando ninguém, a não ser, aparentemente, a (ex) companheira à frente, sabe o que quer fazer ou possui garantias em uma vida que é por demais extensa.

A outra sorriu, quebrando as pernas do antigo amor como fazia antes ao dizer que tudo ficaria bem. Em silêncio, encararam as memórias daquilo sem as lentes da mágoa revelando as preocupações, ainda existentes, com os demônios que dançavam na cabeça de ambas.
            Entenderam ali mesmo que seus caminhos, mesmo difusos, colidiriam. Aceitaram o impacto sem dar mais espaço à trégua. 
           

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