Arrumou as malas, tomou as passagens e saiu de casa. Ao chegar na rodoviária, quase
uma hora antes da partida, decidiu colocar as leituras em dia. Nas mãos, carregava Bauman e a liquidez das relações, devorando cada palavra como se fosse a última (ou como se aquilo esclarecesse alguma das inquietações a respeito do próprio relacionamento).
Faltando quinze ou vinte minutos para dar adeus à capital, notou o estranho logo à sua
frente. Não carregava livros, mas a camiseta estampava bom gosto em produções audiovisuais, fazendo com que a moça gastasse mais tempo demonstrando sua aprovação que o socialmente aceitável. Ele, visivelmente confuso com a identificação das plataformas, saiu e retornou ao local, sentando no lugar que acabara de ficar vago ao lado daquela que não tirava os olhos do seu peito.
Inquieta por estar diante de um raro espécime apreciador de uma série aleatória, “que poucos conseguem ver” (como diria um conhecido), virou para o estranho e o parabenizou pelo bom gosto. Tinha, agora, 15 anos e não mais 23, e se sentia como naquela vez em que descobrira que a vizinha também gostava das mesmas músicas que costumava ouvir. Ele murmurou algo sobre o fato dela têlo encarado de forma engraçada. Ela respondeu que ele era um ponto fora da curva naquela província.
Como forma de dissolver o estranhamento causado pelos impulsos comunicacionais, trocaram informações sobre horários e descobriram que iriam para o mesmo lugar, no mesmo horário e com o mesmo ônibus. Só as poltronas porironia, descuido ou falta de sorte,não eram as mesmas. Detalhe que poderia ser contornado, considerando o cenário deserto às onze horas de uma noite de quinta feira.
Como se a conhecesse há tempos, perguntou o que a garota faria na metrópole. Desconcertada pela proximidade instantânea, respondeu que viajava a trabalho: era jornalista e precisava pesquisar detalhes para uma reportagem. Veria, ainda, o noivo, que morava na cidade em função do trabalho. O interlocutor reagiu com curiosidade à revelação de uma relação à distância. Perguntou como estavam as coisas entre os dois e ela, sem elaborar muito, disse que estavam bem.
Em tom confessional, ele comentou que já vivera algo semelhante. Anotando mentalmente como pauta – para o trabalho e vida- perguntou se havia dado certo. Realista, característica reforçada ao longo das próximas seis horas como ela descobriria, comentou que sim, havia dado certo. Isto é, por um tempo. “Estava tudo bem. Mas, na vida, chega um momento em que você quer ir a um restaurante tailandês que abriu perto do seu trabalho e a pessoa não está lá. Ou assistir um filme muito ruim numa noite de terça. E quilômetros não preenchem isso.” Diante de um roteiro de sua possível vida em questão de meses (ou dias) explanado por um estranho, ela apenas acenou. Entregou as passagens, subiu no ônibus, localizou sua poltrona e esperou que ele fizesse o mesmo.
No assento vago ao lado da garota, ele tomou seu lugar. Conversaram sobre amenidades:
no que cada um trabalhava, onde estudaram, passatempos. Voltaram, então, à camiseta. O assunto, que dera início ao diálogo, levara a livros, filmes e séries. Descobriram mais semelhanças: compartilhavam a mesma afeição por produções já finalizadas, fazendo com que se sentissem órfãos dos mesmos pais.
Diante da empolgação de ambos, os demais passageiros murmuravam 'shhs' com impaciência. Depois de três horas, partiram, então, para outros assuntos. O futuro, as visões políticas, o retrato da família. Assuntos a serem riscados da lista de temas para primeiros encontros pela delicadeza de conteúdos. Mesmo com os dez anos de diferença entre os recém conhecidos, conseguiam acompanhar o pensamento do outro, expressando suas vontades, crenças e inquietações com clareza. Descobriram, em meio a um dos tantos tópicos, além de mais afinidades, um indivíduo em comum. A cidade, afinal, era um ovo.
Curioso com os motivos que a moviam a outro local, ele voltou ao relacionamento dela mais uma vez, indagando o começo, as perspectivas e todo as vírgulas das possíveis frases. Ao encarar todas as dúvidas reprimidas, que surgiam em meio às respostas do interrogatório, a moça inverteu os papéis. Perguntou ao rapaz sentado ao seu lado a respeito das namoradas, soando como a própria avó. Disse que estava só, que terminara uma relação por conta da incompatibilidade de interesses e da divergência entre as necessidades dos dois. Corte seco, fino, limpo. Sem traços de arrependimento, aceitara que cuidar de si era o melhor. Não havendo o que questionar, ela assentiu. Tomara a mesma decisão em algum ponto da vida e por isso se encontrava ali.
Verbalizou a compreensão, dando espaço para que discutissem mais sobre a vida a dois e todas as dificuldades da proximidade. Ele comentou sobre um casal de amigos que vivia um relacionamento aberto e ambos concluíram que o ato de ‘estar junto’, sem amarras, papéis ou círculos dourados, era o caminho mais inteligente. Ela amaldiçoou aqueles que insistem em viver juntos e propagar a infelicidade, sem saber que este, em algum momento, seria seu reflexo.
Após cinco horas de debates acalorados e opiniões convergentes, Morfeu ocupou seu
espaço. Dormiram juntos, no sentido mais puro da palavra. Cabelos, ombros, pernas e braços acomodados no espaço de duas poltronas. Ela acordou antes do amanhecer e riu da ironia de ter protagonizado um de seus filmes favoritos ao contrário, subindo em seu “trem” ao invés de descêlo. Se mexeu na cadeira, fazendo com que a companhia acordasse e visse a pequena se espreguiçando ao seu lado.
Encarou-a enquanto arrumava os cabelos. Disse algo sobre os fios e o sol que começava a aparecer, ambos da mesma cor. Ela agradeceu o elogio às avessas, comentando algo sobre estarem próximos do fim da viagem. Trocaram informações sobre o que cada um faria na cidade. Tomariam as mesmas ruas, cruzariam as mesmas linhas de metrô, visitariam os mesmos lugares. Sempre ao contrário, sem nunca se encontrar. Conferiram as passagens de volta: horários diferentes. A sorte, afinal, só age uma vez.
No desembarque, desejaram sorte ao outro – no espaço de dois dias e na vida. Trocaram
números, combinaram de se encontrar na cidade pra qual logo retornariam.
“Se cuida.”
“A gente se vê.”
Cuidaram-se.
Só que sem voltar a se ver.
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