domingo, 1 de março de 2015

Ventre

Ouça: Múm - Now There's That Fear Again 

 Não fosse pela sequência de horas que me engolem, pelos dias que me apertam o peito, pelas semanas cheias que impedem que grandes pensamentos tomem forma, talvez, não estivesse aqui agora.

É preciso alimentar o corpo para, de alguma forma, manter também a alma sã, viva. Dentro de um desses grandes centros comerciais, tomo meu lugar. Agora, o relógio marca um pouco mais de onze horas. É feriado, a cidade está vazia e apenas alguns poucos tomam os assentos da praça de alimentação. Em uma das cadeiras, repouso o corpo por não poder repousar a mente. No apartamento vazio, as plantas murcham. Aqui, rodeada de luzes artificiais, vitrines abarrotadas e em meio aos aromas da culinária mundial rápida e plástica, ainda há alguma proteção dos meus próprios fantasmas.
Na mesa à frente está Helena. A filha que eu não tive. De olhos mareados, cabelos negros e alma inquieta. Não passa de dois ou três anos.
 Impaciente, pede pelo colo da avó, que a repreende: “assim não, Helena.” Ela pede por um colo que não é o meu. Sem saber porquê, a menina à frente chora as dores do mundo. A pequena à frente é o reflexo do futuro arrancado de meu interior, a morte das esperanças cuspida depois de muito ser mastigada. O englobado de células mandado pelo ralo, ainda quente e não muito rígido.

Em sua cadeira, Helena chora. 
Eu choro também.   

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