segunda-feira, 19 de maio de 2014

Antídoto

Ouça: Amianto - Supercombo

Eu morri naquela noite.

Era sexta, sim. Mas, sei lá, poderia ter sido numa quinta, numa noite de sábado de quem todo mundo espera que algo genial demais aconteça. As pessoas esperam demais, sabe? Enfim, não é isso que eu queria dizer, porque...

Acontece que aquele não era meu dia. Parafraseando Bukowski, também não era minha semana, meu mês. Contrariando as previsões, não era meu ano. Porra, não era minha vida. Não quero soar ingrato. Trabalho, faculdade, um teto...tenho essas coisas que a sociedade exige, que dizem formar uma pessoa de bem, ok. Nota 10. Acumulo também os vazios que todos abominam e também o mau hábito de seguir fantasmas de moças que encontro nas sarjetas dessa cidade fria, mesmo sabendo de potencial –sim- que tenho de poder transformar essas caças em relacionamentos duradouros, com alianças, idas ao parque, discussões sobre Caetano, essas coisas. E o que tem essa maldita sexta? Vazio.
Recém saído do trabalho, decidi pôr fim às coisas. Nada dramático, com pulsos cortados e uma sujeira que ficaria pr’alguém limpar. Nada de poesia. Não, nada disso. A mistura dos tóxicos descobertos na adolescência combinado com um bar igualmente nostálgico resultaria em, no máximo, uma nota rápida num jornal. E alguma comoção na rede social de algum dos fantasmas, com alguma sorte.
Tomei o mesmo caminho, reparando nos detalhes. Os cartazes dos caras das artes da Federal, os cigarros jogados. Sei lá, tanta coisa pequena, sem graça, parece grande demais quando vista pela última vez. Até uma loja de chocolates. Entrei ali sem saber o motivo. Levar chocolates para o pessoal de casa como desculpas tardias pelo que eu faria, embora, claramente, não merecessem. Entrei e enquanto depositava as cédulas na mão da atendente, uma voz ansiosa soltou um:
- Moça, você sabe onde tem comida?
Eu xingaria qualquer imbecil que dissesse isso. Cara, era uma loja de chocolates. Respirei, poderia ser a última besteira que ouviria, não era tão ruim.
- Agora? – a moça do caixa respondeu –  é sexta e tá tudo fechando. Moço, sabe de algum lugar?
Encarei a dona da voz. Era interessante e tinha todo o potencial pra virar fantasma na minha memória. Ansiosa, esperava alguma resposta. Disse o nome do bar mais próximo, que calhava de ser o mais subestimado e com a melhor comida ogra da cidade. Ela perguntou a direção e eu, que nunca soube me orientar, disse que poderia me seguir e a deixaria lá. Agradeceu e sincronizou os passos com os meus pra fora daquele recinto açucarado.
                - Aonde fica esse lugar? Quer dizer, não é longe, né? Eu tenho que voltar pra faculdade e não sei me orientar por aqui.
                - É perto. Você não é daqui?
                - Si...Não. Quer dizer, sou, mas cresci fora e voltei há pouco tempo. Sei lá, eu me perco fácil.
                - Eu também. – mas isso ela não ouviu porque o barulho da alegria jovem abafou a frase. – Enfim, é isso.
                - Moço, desculpa. Cê tem alguma coisa pra fazer agora? É que eu ia te pedir pra me fazer companhia, vai ser rápido, juro.
                - Eu tinha qu...não. Eu fico.

Entramos e ela foi em direção à mesa que meu grupo de amigos costuma ocupar. Fez o pedido e mandou trazer duas cervejas. Eu tinha vontade de gritar “ô, moça, tenho um suicídio programado pra daqui a pouco, se apressa” com a mesma vontade que tinha de ficar ali e mergulhar nos olhos da estranha, mas disfarçava respondendo corretamente. Ela seguia falando da vida, das bandas, da estranha sensação de voltar prum lugar que permanecia na memória, mas se desfazia no peito quando me perguntou sobre a vida.
- Vida? Rá, como é que dizem mesmo? Vai indo. É patético. – eu disse sem conseguir conter a ironia. – Quer dizer, olha só, agora são nove e meia duma sexta. E eu tô aqui, sentado chorando a vida pra uma estranhQUER DIZER, desculpa.
- Não, vai, fala.
Os olhos castanhos- e o álcool da terceira ou quarta cerveja- me convenceram a contar. Tudo, inclusive os planos fatídicos pra mais tarde, que pareciam familiares à estranha, segundo a falta de expressão ou de repreensão por parte dela.
- Vai continuar com isso?
- O quê? O plano? Sim.
- E os chocolates?
- Que chocolates?
- Aqueles que você comprou quando entrou na loja. Eram pra alguém?
- Toma. –empurrei a pequena sacola. – Esses? São pedidos de desculpa pras pessoas lá de casa. – nesse momento, ela abria as embalagens e sorvia cada um dos pedaços sem dar tempo de sentir o gosto.
- Engoli tuas desculpas. –a menina disse quando mastigou o último pedaço- Sinto lhe informar, mas vai ter de esperar até amanhã pra concretizar teus planos. Não dá pra morrer sem deixar desculpas pelo transtorno causado.
Quis rir e ela percebeu, tornando minha vontade a dela. Ria com todo o corpo e só parou porque o celular lhe trouxe de volta pro mundo. Tinha de voltar pros afazeres. Comunicou a partida e estendeu um guardanapo com o número do telefone. Já na rua, ao se despedir, ignorou as convenções sociais que ditam a distância entre corpos estranhos e lançou os braços no meu pescoço.
- Moço, não é por nada não, mas vê se não morre, toma cuidado. Mande notícias, seja um sinal de fumaça.

Foi assim, nem deu tempo pra pensar. Eu morri naquela noite.

 ***

E voltei três vezes mais forte. 

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