Ouça: Amianto - Supercombo
Eu morri naquela noite.
***
Eu morri naquela noite.
Era sexta, sim. Mas, sei lá, poderia
ter sido numa quinta, numa noite de sábado de quem todo mundo espera que algo
genial demais aconteça. As pessoas esperam demais, sabe? Enfim, não é isso que
eu queria dizer, porque...
Acontece que aquele não era meu
dia. Parafraseando Bukowski, também não era minha semana, meu mês. Contrariando
as previsões, não era meu ano. Porra, não era minha vida. Não quero soar
ingrato. Trabalho, faculdade, um teto...tenho essas coisas que a sociedade
exige, que dizem formar uma pessoa de bem, ok. Nota 10. Acumulo também os vazios que todos
abominam e também o mau hábito de seguir fantasmas de moças que encontro nas
sarjetas dessa cidade fria, mesmo sabendo de potencial –sim- que tenho de poder
transformar essas caças em relacionamentos duradouros, com alianças, idas ao
parque, discussões sobre Caetano, essas coisas. E o que tem essa maldita sexta?
Vazio.
Recém saído do trabalho, decidi
pôr fim às coisas. Nada dramático, com pulsos cortados e uma sujeira que
ficaria pr’alguém limpar. Nada de poesia. Não, nada disso. A mistura dos
tóxicos descobertos na adolescência combinado com um bar igualmente nostálgico
resultaria em, no máximo, uma nota rápida num jornal. E alguma comoção na rede
social de algum dos fantasmas, com alguma sorte.
Tomei o mesmo caminho, reparando
nos detalhes. Os cartazes dos caras das artes da Federal, os cigarros jogados.
Sei lá, tanta coisa pequena, sem graça, parece grande demais quando vista pela
última vez. Até uma loja de chocolates. Entrei ali sem saber o motivo. Levar
chocolates para o pessoal de casa como desculpas tardias pelo que eu faria, embora, claramente,
não merecessem. Entrei e enquanto depositava as cédulas na mão da atendente,
uma voz ansiosa soltou um:
- Moça, você sabe onde tem comida?
- Moça, você sabe onde tem comida?
Eu xingaria qualquer imbecil que
dissesse isso. Cara, era uma loja de chocolates. Respirei, poderia ser a última
besteira que ouviria, não era tão ruim.
- Agora? – a moça do caixa respondeu – é sexta e tá tudo fechando. Moço, sabe de
algum lugar?
Encarei a dona da voz. Era
interessante e tinha todo o potencial pra virar fantasma na minha memória. Ansiosa,
esperava alguma resposta. Disse o nome do bar mais próximo, que calhava de ser
o mais subestimado e com a melhor comida ogra da cidade. Ela perguntou a
direção e eu, que nunca soube me orientar, disse que poderia me seguir e a
deixaria lá. Agradeceu e sincronizou os passos com os meus pra fora daquele
recinto açucarado.
- Aonde
fica esse lugar? Quer dizer, não é longe, né? Eu tenho que voltar pra faculdade
e não sei me orientar por aqui.
- É
perto. Você não é daqui?
- Si...Não.
Quer dizer, sou, mas cresci fora e voltei há pouco tempo. Sei lá, eu me perco
fácil.
- Eu
também. – mas isso ela não ouviu porque o barulho da alegria jovem abafou a
frase. – Enfim, é isso.
- Moço,
desculpa. Cê tem alguma coisa pra fazer agora? É que eu ia te pedir pra me
fazer companhia, vai ser rápido, juro.
- Eu
tinha qu...não. Eu fico.
Entramos e ela foi em direção à
mesa que meu grupo de amigos costuma ocupar. Fez o pedido e mandou trazer duas
cervejas. Eu tinha vontade de gritar “ô, moça, tenho um suicídio programado pra
daqui a pouco, se apressa” com a mesma vontade que tinha de ficar ali e
mergulhar nos olhos da estranha, mas disfarçava respondendo corretamente. Ela
seguia falando da vida, das bandas, da estranha sensação de voltar prum lugar
que permanecia na memória, mas se desfazia no peito quando me perguntou sobre a
vida.
- Vida? Rá, como é que dizem
mesmo? Vai indo. É patético. – eu disse sem conseguir conter a ironia. – Quer dizer,
olha só, agora são nove e meia duma sexta. E eu tô aqui, sentado chorando a
vida pra uma estranhQUER DIZER, desculpa.
- Não, vai, fala.
Os olhos castanhos- e o álcool da
terceira ou quarta cerveja- me convenceram a contar. Tudo, inclusive os planos
fatídicos pra mais tarde, que pareciam familiares à estranha, segundo a falta de
expressão ou de repreensão por parte dela.
- Vai continuar com isso?
- O quê? O plano? Sim.
- E os chocolates?
- Que chocolates?
- Aqueles que você comprou quando
entrou na loja. Eram pra alguém?
- Toma. –empurrei a pequena sacola.
– Esses? São pedidos de desculpa pras pessoas lá de casa. – nesse momento, ela
abria as embalagens e sorvia cada um dos pedaços sem dar tempo de sentir o
gosto.
- Engoli tuas desculpas. –a menina
disse quando mastigou o último pedaço- Sinto lhe informar, mas vai ter de
esperar até amanhã pra concretizar teus planos. Não dá pra morrer sem deixar
desculpas pelo transtorno causado.
Quis rir e ela percebeu, tornando
minha vontade a dela. Ria com todo o corpo e só parou porque o celular lhe
trouxe de volta pro mundo. Tinha de voltar pros afazeres. Comunicou a partida e
estendeu um guardanapo com o número do telefone. Já na rua, ao se despedir, ignorou as
convenções sociais que ditam a distância entre corpos estranhos e lançou os
braços no meu pescoço.
- Moço, não é por nada não, mas
vê se não morre, toma cuidado. Mande notícias, seja um sinal de fumaça.
Foi assim, nem deu tempo pra pensar. Eu
morri naquela noite.
E voltei três vezes mais forte.
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