Ouça: Talk Show Host - Radiohead
Era uma vez o menino de botas. Era pernas e braços, ossos e carne, mãos e pés, a gaiola no peito a proteger o coração. Toda a carapuça humana que se costuma ver por aí. O menino de botas vivia sozinho, num quarto pequeno, dentro de uma caixa que ficava no alto, empilhada sobre outras caixas equilibradas, que, diziam, não cairia nunca.
Era uma vez o menino de botas. Era pernas e braços, ossos e carne, mãos e pés, a gaiola no peito a proteger o coração. Toda a carapuça humana que se costuma ver por aí. O menino de botas vivia sozinho, num quarto pequeno, dentro de uma caixa que ficava no alto, empilhada sobre outras caixas equilibradas, que, diziam, não cairia nunca.
Todas as noites, via, do alto as caixas
empilhadas da frente, dos lados. Mais meninos e meninas, sozinhos ou não. Uma
sirene soava longe, os carros passavam, alguém atravessava a rua e cruzava o
portão para subir até seu cubículo. Lá fora, a calma de uma cidade que dormia,
ali dentro, o barulho do relógio amplificado pela insônia. O menino das botas,
sem ter o que fazer, decidiu pescar pensamentos pela janela que sempre encarava.
Ele jogou o anzol. A isca: uma
palavra. Permaneceu em espera. Tanto esperou que caiu no sono. Quando acordou,
o engodo estava vazio. Colocou, dessa vez, duas palavras e lançou o objeto
outra vez. Não demorou muito para perceber a fisgada e puxá-la. Alimentou com
uma só palavra o que no infinito havia, pescou um parágrafo. Na noite seguinte,
voltou a lançar a isca. Aumentava a linha para chegar mais fundo. Alimentava
cada vez mais a criatura que lhe respondia, sem saber o que era.
Num desses dias difíceis, o
menino de botas desistiu de lançar palavras ao vento. O mundo lhe pesava no
peito e fazia o corpo doer. Ignorou a janela aberta e se entregou ao sono, sono esse longe de ser tranquilo. Despertava sempre. Numa dessas ocasiões, abriu
preguiçosamente os olhos e os fixou na janela. Nela, uma estranha repousava.
Sentada, escrevia algo nas pernas ausentes: tinha uma cauda. A visão de uma
sereia de ar na janela era incomum. O menino moveu-se na cama, assustando a
intrusa, que saiu pela janela. Ele tornou a dormir, ela virou protagonista do
que era lembrado como “somente um sonho”.
Na noite seguinte, o anzol tornou
a descer. Primeiro com uma palavra, depois uma frase: quando o menino de botas
puxava, só vinha o vazio. Mandou um parágrafo. A resposta foi uma fisgada
rápida que trouxe a menina do sonho à superfície. Ela se manteve distante o
suficiente para manter ambos inteiros. Não cantava para não afundá-lo. Mas
contava. A menina sereia tinha histórias na cauda. As cicatrizes de outros
pescadores serviam de linha pra narrativa. Explicavam como foi quando tentaram
capturá-la, como havia doído, mas também as razões pela qual continuava ali, a
responder chamados. As cicatrizes dela não eram diferentes das dele. Aos poucos, o menino de botas e a menina com cauda se
aproximaram. Ele, sentado na janela, explicava como era pisar e se fazer
presente no mundo, ela, flutuando à sua frente, tentava fazê-lo entender como é
ser etérea feito ar. Encontravam-se todas as noites e o peito dele já não
pesava mais.
Em uma terça feira, o menino de
botas se atrasou. A menina com cauda já esperava impaciente e o céu se mostrava
tão revoltado quanto ela com a demora. Sentou na janela enquanto o esperava. O céu já começava a desabar e a menina, feita de ar, pedia
socorro para que não fosse levada com o vento e as gotas. Se segurava com uma
só mão quando ele chegou. O menino de botas se inclinou na janela para alcançá-la. Caiu. Vendo a
queda dele, ela se soltou.
Sem
saber, se lançaram juntos no infinito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário