quarta-feira, 19 de março de 2014

Faz-de-conta

Ouça: Talk Show Host - Radiohead 

Era uma vez o menino de botas. Era pernas e braços, ossos e carne, mãos e pés, a gaiola no peito a proteger o coração. Toda a carapuça humana que se costuma ver por aí. O menino de botas vivia sozinho, num quarto pequeno, dentro de uma caixa que ficava no alto, empilhada sobre outras caixas equilibradas, que, diziam, não cairia nunca.
Todas as noites, via, do alto as caixas empilhadas da frente, dos lados. Mais meninos e meninas, sozinhos ou não. Uma sirene soava longe, os carros passavam, alguém atravessava a rua e cruzava o portão para subir até seu cubículo. Lá fora, a calma de uma cidade que dormia, ali dentro, o barulho do relógio amplificado pela insônia. O menino das botas, sem ter o que fazer, decidiu pescar pensamentos pela janela que sempre encarava.
Ele jogou o anzol. A isca: uma palavra. Permaneceu em espera. Tanto esperou que caiu no sono. Quando acordou, o engodo estava vazio. Colocou, dessa vez, duas palavras e lançou o objeto outra vez. Não demorou muito para perceber a fisgada e puxá-la. Alimentou com uma só palavra o que no infinito havia, pescou um parágrafo. Na noite seguinte, voltou a lançar a isca. Aumentava a linha para chegar mais fundo. Alimentava cada vez mais a criatura que lhe respondia, sem saber o que era.
Num desses dias difíceis, o menino de botas desistiu de lançar palavras ao vento. O mundo lhe pesava no peito e fazia o corpo doer. Ignorou a janela aberta e se entregou ao sono, sono esse longe de ser tranquilo. Despertava sempre. Numa dessas ocasiões, abriu preguiçosamente os olhos e os fixou na janela. Nela, uma estranha repousava. Sentada, escrevia algo nas pernas ausentes: tinha uma cauda. A visão de uma sereia de ar na janela era incomum. O menino moveu-se na cama, assustando a intrusa, que saiu pela janela. Ele tornou a dormir, ela virou protagonista do que era lembrado como “somente um sonho”.
Na noite seguinte, o anzol tornou a descer. Primeiro com uma palavra, depois uma frase: quando o menino de botas puxava, só vinha o vazio. Mandou um parágrafo. A resposta foi uma fisgada rápida que trouxe a menina do sonho à superfície. Ela se manteve distante o suficiente para manter ambos inteiros. Não cantava para não afundá-lo. Mas contava. A menina sereia tinha histórias na cauda. As cicatrizes de outros pescadores serviam de linha pra narrativa. Explicavam como foi quando tentaram capturá-la, como havia doído, mas também as razões pela qual continuava ali, a responder chamados. As cicatrizes dela não eram diferentes das dele. Aos poucos, o menino de botas e a menina com cauda se aproximaram. Ele, sentado na janela, explicava como era pisar e se fazer presente no mundo, ela, flutuando à sua frente, tentava fazê-lo entender como é ser etérea feito ar. Encontravam-se todas as noites e o peito dele já não pesava mais.
Em uma terça feira, o menino de botas se atrasou. A menina com cauda já esperava impaciente e o céu se mostrava tão revoltado quanto ela com a demora. Sentou na janela enquanto o esperava. O céu já começava a desabar e a menina, feita de ar, pedia socorro para que não fosse levada com o vento e as gotas. Se segurava com uma só mão quando ele chegou. O menino de botas se inclinou na janela para alcançá-la. Caiu. Vendo a queda dele, ela se soltou.



                Sem saber, se lançaram juntos no infinito. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário