Ouça: Every Day Is Exactly the Same - Nine Inch Nails
Não
passava da meia-noite. A cidade cinza se tornava ainda mais mórbida sob os
efeitos da garoa fina. Nada fora do normal. Chovia como se a província houvesse
sido terrivelmente magoada. Quase tanto quanto Jaime fora. Marina tinha partido
há alguns anos, mas a dor permanecia ali. A esposa havia sido arrancada da vida
de forma estúpida, mas não era isso que mais lhe incomodava.
Dois
meses antes de encontrar abrigo a sete palmos do chão a mulher revelara a
traição. O orgulho foi ainda mais ferido quando descobriu que o amante não era
Fernando, o colega de trabalho inconveniente de quem a mulher vivia falando,
mas a mulher do rapaz, Sílvia. Das duas vítimas, Jaime era o que mais havia
sido atingido: após Marina ter cortado relações com a mulher, a vida dos dois
se tornara um vívido inferno. Sílvia passara a mandar cartas e ameaças ao amor
mal resolvido. Em pouco tempo, as ameaças evoluíram para atos agressivos e no
carnaval de 2010, Marina fora atropelada por aquela que uma vez lhe jurara amor
eterno. Morreram as duas. A primeira devido aos ferimentos do acidente, a
segunda pouco tempo depois em uma cela suja, enquanto cumpria a pena por crime
passional. Durante esse tempo, Jaime permaneceu em
seu apartamento, paralisado pelo luto e, mais ainda, pelo orgulho
dilacerado. Cada pedaço daquele lugar era um pedaço da mulher que amara e
jamais voltaria.
Cansado de voltar ao cubículo há tanto tempo vazio, decidiu se aventurar pelas
ruas da adolescência. Cerca de vinte e cinco anos atrás ainda era um jovem
atraente e sempre recebia provocações das mulheres que ali comercializavam seus
corpos em troca de um valor simbólico, o necessário pra seguir com a vida.
Joana, uma das mais experientes do “mercado” foi sua primeira. Numa tarde de
terça feira, disse à mãe que iria estudar com uns colegas que moravam um pouco
além do colégio. Mal sabia a mulher que seu caçula se aventurava nos
ensinamentos do corpo. E do amor. Joana, aos 30 anos, mantinha o corpo firme.
Era a preferida dos homens que investiam seu tempo –e dinheiro–em prazeres proibidos. Do
menino Jaime nada cobrava: era novo, ingênuo e um ótimo pupilo,
desses que agraciavam seus mestres com pequenos mimos. A balzaquiana
apreciava as atenções do rapaz, considerava-o como o filho que não teria.
Quando nova, tivera o corpo imolado por aquele que julgara ser seu primeiro
amor. Ela engravidara, mas fora obrigada a, como o charmoso homem disse: dar
fim ao problema. Isso causou-lhe danos, impedindo-a de construir família, como
sonhara com a mãe. Carregava as cicatrizes no corpo, mas cortes profundos
na alma. Estes sangraram quando, aos trinta e três anos, o homem, então de meia
idade, retornou, contando-lhe da família e dos três filhos. Joana, que nunca
soubera superar a antiga história, engoliu comprimidos com álcool para apartar
as dores da alma. Fora a primeira perda de Jaime.
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