Ouça: ela vestiu-se de vermelho - uyara torrente
Vestiu-se.
Pintou os lábios. Acariciou as maçãs do rosto com o pincel carregado de um pó colorido.
Os cabelos negros caíam sobre os olhos semicerrados. Da janela aberta, a lua
acariciava a pele morena como se, no afago, tentasse dissipar angústia. O
ambiente encontrava-se relativamente calmo, apenas com um leve barulho de água
a correr.
A
calmaria que, até então, reinava, fora interrompida. Primeiro pelas caixas, que
ali estavam há cerca de uma semana, sendo arrastadas, depois pela batida da
porta. Do quarto, ouvira os passos arrastados e o conhecido pigarreio.
Resignou-se a baixar a cabeça. Sentada em frente ao espelho contava até dez,
buscando controlar a respiração descompassada.
Não
lembrava quando deixou de exercer seu papel de mulher. Aos poucos, descobriu
que a rua o acalentava mais que o próprio colchão. Ele a deixara cerca de um
mês atrás. Trocou-a por uma moça mais jovem, de rosto mais firme e corpo mais
lânguido. Em meio à fúria provocada pelo abandono, jogou cartas, fotos,
presentes e a memória do que um dia foi sonho. Ela, que nunca soube ser
só, descobriu-se insone e passou noites encarando o vazio: do peito e do
apartamento.
Ainda
em silêncio, continuava a encarar o espelho. Na cômoda, arrumara os perfumes,
cremes e algumas joias. Guardara estas últimas na velha caixa que herdara da
avó: colares, brincos, anéis. De dentro, retirou um pequeno círculo dourado,
colocando-o no anular esquerdo. Seguiu ao lavabo e, sem abandonar as vestes,
deitou-se na banheira, agora silenciosa e cheia. Tomou o caco de
espelho–quebrado há exatos 7 anos– e apresentou-o à pele. Sentiu a água invadindo
cada poro enquanto deslizava para dentro de uma imensidão rubi, do mesmo tom do
vestido que usara quando o conheceu. Tornou-se uma só. Vestiu-se: e, dessa vez, do
mais puro vermelho.
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