terça-feira, 28 de maio de 2013

V

Ouça: ela vestiu-se de vermelho - uyara torrente
                
                Vestiu-se. Pintou os lábios. Acariciou as maçãs do rosto com o pincel carregado de um pó colorido. Os cabelos negros caíam sobre os olhos semicerrados. Da janela aberta, a lua acariciava a pele morena como se, no afago, tentasse dissipar angústia. O ambiente encontrava-se relativamente calmo, apenas com um leve barulho de água a correr. 

                A calmaria que, até então, reinava, fora interrompida. Primeiro pelas caixas, que ali estavam há cerca de uma semana, sendo arrastadas, depois pela batida da porta. Do quarto, ouvira os passos arrastados e o conhecido pigarreio. Resignou-se a baixar a cabeça. Sentada em frente ao espelho contava até dez, buscando controlar a respiração descompassada.
                Não lembrava quando deixou de exercer seu papel de mulher. Aos poucos, descobriu que a rua o acalentava mais que o próprio colchão. Ele a deixara cerca de um mês atrás. Trocou-a por uma moça mais jovem, de rosto mais firme e corpo mais lânguido. Em meio à fúria provocada pelo abandono, jogou cartas, fotos, presentes e a memória do que um dia foi sonho. Ela, que nunca soube ser só, descobriu-se insone e passou noites encarando o vazio: do peito e do apartamento.

                Ainda em silêncio, continuava a encarar o espelho. Na cômoda, arrumara os perfumes, cremes e algumas joias. Guardara estas últimas na velha caixa que herdara da avó: colares, brincos, anéis. De dentro, retirou um pequeno círculo dourado, colocando-o no anular esquerdo. Seguiu ao lavabo e, sem abandonar as vestes, deitou-se na banheira, agora silenciosa e cheia. Tomou o caco de espelho–quebrado há exatos 7 anos– e apresentou-o à pele. Sentiu a água invadindo cada poro enquanto deslizava para dentro de uma imensidão rubi, do mesmo tom do vestido que usara quando o conheceu. Tornou-se uma só. Vestiu-se: e, dessa vez, do mais puro vermelho. 

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