sábado, 23 de abril de 2016

A náusea


À primeira mordida, sentira o doce do fruto sendo triturado pelos dentes passando da língua à garganta em poucos segundos. Tornando a morder, sentiu o gosto enjoado, o cheiro fétido da podridão a invadir-lhe o corpo. Colocou para fora o pedaço, descartando a parte maculada da refeição, que lembrara, seria a única em três ou quatro horas até poder chegar a própria casa. Insistiu nas partes limpas, mas o odor invadia suas narinas reforçando os defeitos da fruta que julgara perfeita momentos antes de levar à bolsa. Lembrou-se de algum ensinamento popular que dissera que um fruto maculado em contato com outros corromperia os demais. O estômago revirou com a metáfora: sua vida era uma sucessão na qual mesmo as maçãs que ainda resistiam agarradas ao pé seriam contaminadas por más escolhas tal qual aquela que se dissolvia em sua boca. Pensou também que à humanidade restaria a podridão resultante de tantas más escolhas como as dela. "Estaria, então, tudo perdido?", pensou enquanto engoliu outro pedaço, deixando que a parte escura deslizasse por suas papilas e laringe, ciente como se sentisse todo o percurso até o derradeiro baque surdo ao atingir o fundo do estômago. A água quente dentro de sua bolsa não limparia e outros sabores não reduziriam o gosto de encarar uma existência dotada de erros que não seria salva por um acerto. Sua existência tornava-se, então, permanentemente azeda e tudo estaria perdido. Perdido. Era isso.

Estaria tudo perdido?